Estou na terceira semana quase sem redes sociais (ainda atualizo a do meu estúdio Casa na Árvore). Com o espaço que essa ausência criou nos meus dias, tenho prestado atenção a outros tipos de rede. A reflexão começou a partir da minha última tatuagem: uma cobra mordendo seu próprio rabo, o Ouroboros. O símbolo, que representa a continuidade da vida, é famoso em diversas tradições e pode remontar a 3500 a.C. Eu não sei exatamente porque quis marcá-la em meu corpo, mas tem algo de tão antigo e profundo nela que me traz a sensação de um outro tempo vivido, não sei se por mim, mas por algo em mim. Algo que segue existindo no agora, nas minhas células, vértebras e carne; fruto de metamorfoses que se desenrolam desde o começo dos tempos, carregando todas as memórias do universo. Uma compostagem cósmica.
“Nosso espírito sempre está no corpo de outras espécies”, assim Emanuele Coccia começa um dos capítulos do seu livro Metamorfoses. A biologia, a ecologia moderna e outras ciências naturais têm informado mais e mais sobre o alto grau de simbiose entre todos os seres. A interdependência passa a ser, não só um conceito filosófico, mas uma realidade da qual não podemos mais fugir. O ato de pertencer, se entrelaçar e estabelecer parentesco com espécie mais que humanas agora ganha uma base cognitiva: dependemos uns dos outros para sobreviver e, dessa forma, precisamos encontrar formas de existir com.
Livro Metamorfoses de Emanuele Coccia
Ainda assim, temos limites, que nosso corpo bem expressa. Não somos terra diretamente, pois um monte de outras moléculas se juntaram para formar isso a que chamamos de corpo. Estabelecemos fronteiras para não sermos a mesma coisa, mas sermos juntos. Pequenas gotas no oceano ainda são gotas, mesmo sendo também oceano. Donna Haraway explica como tais limites se afrouxam para sermos com: “Ninguém vive em todo lugar; todo mundo vive em algum lugar. Nada está conectado a tudo; tudo está conectado à alguma coisa’. Cada território que essa fronteira chamada corpo encerra dentro de si parece ter algo de único e ainda assim, algo compartilhado: a consciência, o silêncio que ecoa após a pergunta “quem somos nós?”
Por mais avançada que esteja a ciência nos dias atuais, ela ainda não chegou nem perto de definir o que seria e onde, exatamente, a consciência se encontra. Sabe-se que, por processos cognitivos, ela se manifesta principalmente pelo nosso cérebro, mas isso não a encarcera lá. A consciência não é um órgão e isso impõe um belo desafio ao reducionismo científico: não é possível entender o todo só com as partes. O intelecto não é parte, mas o próprio todo em interação. Ou melhor, para Emanuele Coccia, o intelecto não é uma coisa, mas uma relação. O que chamamos de espírito, segundo ele, é a vida de duas espécies se relacionando. Voltando para Donna Haraway e para a minha tatuagem: não existe evolução, somente a coevolução. Não só meu corpo compostado guarda memórias de uma terra outra, como a minha própria memória é lembrança compartilhada. Se lembro é porque lembramos.
“Cada um vive do corpo do outro. cada um tirou seu corpo de outrem. Como se, desde o início, a Terra fosse um corpo formado pelos corpos de todas as espécies, em que cada um vive da vida dos outros e todas as espécies são inseparáveis" - Emanuele Coccia
Neste espaço compartilhado que dividimos e que, por enquanto, se limita ao planeta Terra há uma força comum, uma força estranha (diria Roberto) que atravessa a todos os seres vivos e não vivos, humanos e mais que humanos. Coccia insiste: somos produto de uma metamorfose coletiva. Penso logo nos fungos, esta espécie por tanto tempo subestimada que agora tem ganhado o seu lugar ao sol, mesmo que debaixo do solo, como a grande rede da vida. O maior e mais antigo organismo já descoberto no nosso planeta é um fungo que vive no topo de uma montanha do Oregon. Um senhor que já viu de tudo e que compartilha e que divide conosco tais memórias. Do que foi, do que virá a ser.
Toda vez que subo a montanha, tenho a sensação de segredos antigos soprados aos meus ouvidos. As pedras são velhas e já viram de tudo. Peço um conselho e recebo a resposta de quem, se fosse um ser humano, me diria “nenhuma situação é tão nova assim que eu não possa adivinhar o desdobramento”. Mas essa sabedoria não é privilégio das montanhas. É uma biblioteca compartilhada entre os seres do cosmo, onde os signatários somos nós. O sol se põe neste instante e eu faço questão de ver seu último raio desaparecendo atrás da montanha. Meu espírito vê essa cena desde o começo dos tempos. Ainda assim, a relação do eu hoje com o pôr do sol agora é sempre outra.
Somos produto de um mesmo material, levados a nos diferenciar para que a relação existisse. O motivo? Mistério. Mas parece ser este o combustível dessa vida que nem foi e nem será. Mas que é. Ouroboros, o eterno girar. O fim do ciclo é ao lado do seu início. Eu e você, a mesma coisa e, ainda assim, expressões tão diferentes da mesma coisa. Para a fenomenologia, tudo o que nos aparece (o fenômeno, o instante) é a culminação de um processo, o resultado de encontros e interações. Para ter olhos que co-enxerguem é preciso ver o invisível no visível.
Nossa mente não está fadada às mesmas fronteiras que o corpo. Ela está disposta numa teia que, assim como a da aranha, qualquer vibração faz mudar a composição. Não sei exatamente no que essa percepção muda a nossa forma de estar no mundo, já que, querendo ou não, somos com. Não é preciso permissão. Estamos interligados e não há a mínima chance de ser diferente. Se a consciência é uma teia sensível aos mínimos movimentos, no entanto, aceitar tal realidade pode ser a continuidade dessa fiação que o antropoceno tenta, a todo custo, interromper. O solo é comum, mas pode virar terra seca ou solo fértil, a depender se nos vemos como donos de recursos a serem explorados ou como agricultores de um cultivo comum.
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COCCIA, Emanuele. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes, 2020.
HARAWAY, Donna. Tentacular Thinking: Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene. E-flux Journal. Issue 75. Setembro de 2016. Disponível em: https://www.e-flux.com/journal/75/67125/tentacular-thinking-anthropocene-capitalocene-chthulucene/