Sonhos multiespécie
Desde o começo da pandemia, tenho tido sonhos apocalípticos. Já vi pesquisadores falando que isso não é nada anormal. A situação de emergência que o planeta vive, não só em relação à COVID, mas às muitas possibilidades de fim do mundo como o conhecemos, têm alimentado o nosso imaginário. Nos primeiros dias de isolamento, esses sonhos eram muito mais frequentes. Mas eles não foram embora. Ainda estão aqui, esgueirando por detrás da porta e esperando que eu me acostume com uma certa normalidade para vir me chacoalhar. “Mas nada está normal”, eles me gritam. Eu decido abrir minha escuta e minha carne para que esses invasores me façam sentir algo, algo do que está acontecendo com o mundo.
Numa noite dessas, depois de um dia tranquilo pautado pela rotina, eles vieram. Sonhei que o lugar onde eu estava ia alagar e não tinha ponto alto o suficiente para eu e um grupo de pessoas no abrigarmos. De alguma forma, sabíamos que a água ficaria nesse nível por um mês e depois abaixaria de novo. Neste tempo, teríamos que arrumar uma forma de sobrevivermos submersos. Tínhamos uma espécie de máscara que nos permitia respirar livremente e uma alimentação/hidratação por sonda. Era possível passar 30 dias assim. Mas o medo me consumia. O medo das previsões estarem erradas e termos que viver daquele jeito para sempre, o medo da minha mente não aguentar tantos dias sem falar, sem me mover direito e com a liberdade muito limitada. No sonho, eu e um grupo nos preparávamos com muita atenção. Qualquer erro, custaria nossas vidas. Chegado o dia, meu coração estava disparado, como se eu soubesse o exato minuto da minha morte. Eis que na hora prevista para o alagamento, a água continuava calma e baixa, sem sinais de revolta.
Logo nos chega a notícia de que a tragédia tinha mudado, como se ela fosse uma dívida que a humanidade tivesse que pagar, de um jeito ou de outro. Agora, não era mais uma enchente descomunal, mas o fim das minhocas em todo o planeta. Não sei se vocês sabem, mas minhocas são o sistema digestivo da Terra. Elas ajudam a decompor resto de vegetais e de animais; cavam túneis gigantes embaixo da terra, renovando os nutrientes do solo ao trazerem suas camadas mais profundas para cima; criam cavidades na terra, que permitem a penetração de raízes e água da chuva; além de produzirem húmus, um perfeito adubo para as plantas, com seus excrementos. Ou seja, sem elas provavelmente o mundo seria um lugar muito diferente, talvez com uma alimentação radicalmente diferente. Minhocas não são as únicas decompositoras, mas são umas das principais. E se, não houvesse decomposição no planeta, ou se ela fosse radicalmente diminuída, provavelmente teríamos que nos alimentar como astronautas: tirando os nutrientes necessários para o nosso organismo de matérias mortas e colocando-os em cápsulas. Possível, mas nada saboroso.
Alguns dias depois, para a minha surpresa, minha mãe sonhou a mesma coisa. Mas só na parte da água. O fim dela foi mais otimista que o meu: a tragédia não chegava e a vida seguia. Minha terapeuta provavelmente encontraria muitas relações e significados com a minha história individual. Eu também encontrei. Mas estou mais interessada no eu além de mim, no momento. Acredito que sonhos são mensageiros multifacetados e podem comunicar muitas coisas, sejam processos coletivos ou individuais, mensagens da vida terrena e do além, intercessões do meu mundo e do cruzamento de mundos. No lugar onde meu corpo tece dependência com os corpos de outras espécies, meu comer depende de uma minhoca na Terra. Então sonhar com o fim delas não é uma experiência só minha, nem só delas. São nossos fazeres-mundo se encontrando de forma onírica.
O que as mudanças climáticas causam, para o além visto, são conexões perdidas. Espécies que desaparecem não somem sozinhas, mas levam com elas todas as relações que estabeleciam e que ainda viriam a estabelecer com outras. São mundos inteiros que se vão porque nenhum mundo existe sozinho, mas em relação. Lá no começo do texto, chamei meus sonhos de invasores porque gosto de pensar que, quando sonho, sonho junto, sonho multiespécie. Talvez o que as minhocas estão experienciando tenha me atingido no campo onde, sem armaduras, me deixo disponível para que outras consciências colidam com a minha. Talvez tenha sido a vivência de outro ser conectado às minhocas que chegou até mim.
Os yanomami sabem a importância que sonhar multiespécie tem, o que não é o mesmo que apenas dormir. No livro A Queda do Céu, Davi Kopenawa, xamã deste povo dá o diagnóstico: “Os brancos dormem muito, mas só sabem sonhar com eles mesmos”. Aqui, uma imagem de tal pensamento e sua ontologia relacional: os processos vão para além do humano. Nascer com tal biologia não nos encarcera aqui. É possível sair da humanidade, vez ou outra. Ora caçador, ora caça.
Para o neurocientista e especialista em sonhos, Sidarta Ribeiro, o projeto civilizatório moderno-colonizador-ocidental nos fez a parte da humanidade que o compra perder a capacidade de sonhar coletivamente. Alguns povos indígenas ainda se sentam para compartilhar os sonhos e usá-los como bússolas. “O sonho é um oráculo ... O sonho é uma simulação do futuro provável com base no passado, recente ou não”. E eu acrescento, é uma experiência entre espécies, de vivências compartilhadas por metamorfoses que se dão desde o começo da história do planeta, nosso corpo como resultado da decomposição de tantos outros corpos, nossa mente como chão-comum (ver texto anterior). “Mas estamos abrindo mão deste farol para o futuro” é o que Sidarta e Davi alertam:
Os brancos estão destruindo a Amazônia porque não sabem sonhar. Se eles pudessem, como nós, ouvir outras palavras além da mercadoria, saberiam ser menos hostis para com os povos indígenas.
Vocês, os povos das cidades, não são xamãs que entram em contato com os espíritos. Nós conhecemos os riscos, sabemos interpretar os sinais dos perigos. Os capitalistas, os políticos e os grandes empresários querem arrancar todas as raízes da terra. Eles não se dão conta disso porque não sonham. Eles não podem imaginar que, com a intenção de extrair todos os minerais, eles vão acabar derrubando o céu.
Nós sonhamos e alertamos os brancos para avisá-los de que não devem continuar assim. No futuro, talvez em 2021 ou 2023, se os Yanomami desaparecerem, teremos que esperar um pouco e ver o que vai acontecer. O céu não vai avisá-los. Vocês todos vão dormir para não sentir esse enorme peso cair sobre vocês
O céu avisa quem se abre para ele. Quem permite que sua imensidão faça morada na noite escura. Não sei até onde chego convidando outras existências para habitarem a minha imaginação mas, neste exercício de deslocamento, pretendo me juntar à elas em aliança e manifesto. Donna Haraway, citando o trabalho de Phillipe Pignarre e Isabele Stengers, diz que é preciso inventar, no coletivo de vidas terrenas, “novas práticas de imaginação, resistência, reparação, luto, e sobre viver e morrer bem”. Este mundo-com não é só urgentemente necessário, mas possível, e está esperando para nascer, como diria Eduardo Galeano. O sonho pode ser um portal, um lugar para esquecer de quem se é e ser devir: devir-humano/devir-planta/devir-animal. Apago as luzes, me deito, convido as minhocas a entrarem e decomporem minhas ideias sobre uma existência humano-centrada.
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Fontes citadas:
KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
HARAWAY, Donna. Tentacular Thinking: Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene. E-flux Journal, Issue 75, September: 2016. Disponível em: https://www.e-flux.com/journal/75/67125/tentacular-thinking-anthropocene-capitalocene-chthulucene/