Quando me lembro que também sou caos
Depois de uma semana longe, aqui estou de novo. Passei por semanas difíceis, daquelas que exigem de nós apenas o mínimo, enquanto as tempestades fazem seu trabalho. Minha alma já conhece o cheiro de confusão anunciada. Começa com as funções básicas falhando e o corpo fugindo de algo que ainda não tem nome. São os meus monstros, que vez ou outra, vêm me visitar para escrever na minha pele aquilo que ainda não consegui dizer, mas que já penetrou os buracos de mim em dias que eu achava que estava tudo bem. Sua última visita me tirou o sono, literalmente, e passei um mês sem dormir direito. Chorei, me desesperei, li sobre fungos, pedi socorro pro céu e… escrevi. Numas dessas noites, meu caderno recebeu o seguinte:
Escrever do meio do caos, do alto da dor e da confusão não é algo que eu sei fazer muito bem. Minha escrita vem nos momentos plácidos pós furacão. Aqueles em que tudo se acalma e consigo entender o que foi para nunca mais voltar, o que veio para ficar e o que está para chegar. Na catarse, me recolho e reúno as forças para que passe. Mas hoje, quis fazer diferente: e se, ao invés de me fechar, eu me abrir para deixar o mundo entrar em mim? E se eu permitir que o mundo em mim extravase por meio da escrita?
Ontem li a filósofa canadense Alexis Shotwell dizendo “A pureza é um mito. É uma mentira. A única forma de você achar que ela existe é se você não se vê envolvido e conectado com o mundo e com as outras pessoas. Tão logo você respira, assim que bebe um gole de água, quando está em qualquer tipo de relacionamento, você está implicado com tudo o que está acontecendo”. Quanto mais persigo a ilusão da pureza, da serenidade sem perturbações, impedindo que o mundo penetre em mim, mas o meu corpo se contorce em desespero. Então, uma hora me canso e me entrego. Mantendo a tradição, não consegui escrever mais que um parágrafo do alto da confusão. Já me sinto na outra margem do rio e, por isso, estou aqui. Mas as palavras ainda estão tentando se juntar, um pouco desajeitadas. Por enquanto, só sei costurar, conversar com as frases de outros e as minhas próprias, perdidas por aí, como essas, escritas há exato um ano:
De todos os demônios que conheço, os sem nome são os que me assombram mais
Sento com o meu pavor e com o meu fascínio e peço para eles me dizerem qualquer coisa que seja sobre a sua natureza. Ele se recusam, mas vão me mostrando facetas do seu corpo estranho. Nunca vejo o todo
Disse Lao Tse que o nome que pode ser nomeado não é o verdadeiro nome
Engulo, então, os demônios para que eles se incorporem em mim, façam morada no meu corpo e, quem sabe, na intimidade das entranhas possam me dizer como se chamam
Mas eles me amaldiçoam, ao mesmo tempo que abençoam a minha escrita, porque se escrevo, escrevo porque me falta: faltam as palavras, falta o outro, faltam os nomes dos meus demônios.
E há algo a ser feito do alto das tempestades que nos atingem? Focar no básico funciona para mim. O cotidiano e o ordinário têm poder: dormir, acordar, comer, limpar, trabalhar… não é hora para extravagâncias. Mas enquanto experimentava o caos e achava que nunca ia passar (como sempre acho - e sempre passa), o Pastor Henrique Vieira (para quem não conhece, vale muito) disse algo que me tocou: “O contrário da esperança é o desespero”. Nas noites insones, eu começava as minhas preces dizendo que estava desesperada e Deus me lembrou dessa frase “seu antídoto é a esperança”. A esperança, minha velha aliada nessa coisa de imaginar outros mundos. Mais uma vez ela veio me salvar. Numa espera ativa, eu cultivo a fagulha de dias mais tranquilos no meu coração. Um mistura de ação e entrega, foco e confiança, avanço e espera.
O eco teólogo norte-americano Thomas Berry dizia: "a perda da Imaginação e a perda da natureza são a mesma coisa. Se um se perde, o outro se perde”. Imaginar é o primeiro passo para a mudança e a esperança é o seu combustível. Só um coração que acredita, consegue seguir em dias tão complexos. Meus monstros me convidam para o caos, mas eles não querem que eu fique lá para sempre. Eles chacoalham a casa para me mostrar tudo o que está fora do lugar. O perigo de ficar confortável demais na própria pele é se esquecer que estamos sempre fazendo mundos uns com os outros. As perturbações são inevitáveis.