Quando as rachaduras dentro de nós começam a fazer barulho do lado de fora
Uma reflexão sobre as mudanças anunciadas pelos corpos
Sinto meu corpo se contorcer numa tentativa inútil de encontrar equilíbrio novamente. Os tremores chegam em ondas, perturbando a paz conquistada três minutos atrás. A respiração fica mais curta e o sono tem dificuldade de se estabelecer. Na primeira vez que senti isso, lá pelos meus 15 anos, pensei que estava morrendo; na segunda e na terceira, já sabia que o nome era ansiedade/pânico. Hoje, com quase 30, e muitas crises depois, sei que é o meu corpo anunciando algo que ele já sabe há muito tempo, mas ainda não me chegou à consciência: é hora de mudar, algo precisa ser reordenado, revigorado, trocar de lugar… ou, precisa morrer para sempre.
A questão é que nunca sei o que é esse algo. Minha ilusão de controle gostaria de saber para consertar a peça estragada e permitir que a vida siga. Mas os terremotos dentro de mim só mostram pequenas rachaduras e precisam que eu confie neles para me mostrarem o abismo inteiro. Quando me deparo com ele, posso decidir se pulo ou não. Neste momento, geralmente, já é muito tarde para voltar atrás. Fendas não voltam atrás. Elas ficam lá te lembrando do tamanho da cratera que se abriu nos seus corpos (físico, sutil, espiritual). Pular pressupõe o risco de cair no buraco sem fundo visível. Já escolhi ficar, já escolhi saltar, já aterrei com os pés firmes do outro lado, já caí em queda livre. Tudo caminho. Mas a angústia é um tipo de fenômeno que, quando surge, quer dizer algo do nosso ser mais profundo.
Por isso, paradoxalmente, hoje fico mais confortável nos momentos de terremotos internos. É a terra em mim se agitando para que eu perceba algo que me escapou. O meu corpo respondendo (ou tentando me avisar) aquilo que a alma já sabe. Gosto de observar com a curiosidade de quem olha para um fenômeno vivo, em plena evolução, e ir sentindo aquilo que quer nascer, que pede espaço para emergir. Ajuda não me identificar com o processo e, ao mesmo tempo, mergulhar no processo. Não me confundir com os sentimentos que surgem, mas vivê-los com inteireza. Cuidar de processos vivos de forma regenerativa é zelar por eles com a atenção de quem quer estar pronto para toda e qualquer convocação que eles façam, mas com a rendição de quem sabe que, tentar direcioná-lo demais, faz com que algo mágico se perca. O entre. A mente que só foca em resultados perde os nós que foram atados para sustentá-los.
O filósofo nigeriano Bayo Akomolafe, a quem sempre cito aqui, por conseguir falar do inominável com tanta destreza e respeito, nos conta sobre o termo Selah, uma espécie de símbolo usado em contexto musical para indicar ao maestro uma pausa antes de tudo mudar, novos sons, novas vozes, tudo o que não havia sido visto antes. Segundo Bayo, Selah sinaliza o momento de travessia, “algo fora da configuração e ainda intimamente emaranhado com a configuração. O advento. O sobrenatural cruzando o 'este-mundano'”. Nem lá, nem cá. O entre-mundos. A transição. Uma pausa. um momento para reconsiderar aquilo que estava ali como certo, como dado.
Cuidar de processos é, então, cuidar do entres. E entres são especiais por ainda não terem nome, por não serem nem isso e nem aquilo, por estarem flutuando entre tempos e espaços. Neste momento, um tanto de sonhos curiosos me atravessam: com panteras negras; com pessoas que já não vejo há muito tempo; com viagens para lugares estranhos, que misturam o conhecido com o que nunca vi. Não me atrevo a tentar contar e nem a escrever os detalhes desses sonhos. Há uma magia nos entres que escapa ao tentarmos explicá-la demais. E é aí que a angústia mora: no delicado espaço da vida que começa a brotar. Em um texto sobre a anarquia relacional, o grupo Razão Inadequada escreveu “O espanto é um grande começo, é um anúncio triunfal de um novo caminho. Quem sabe onde vai dar?” Que você olhe para os seus incômodos com olhos de assombro e encantamento, como mensageiros da transformação que são. O que anda te arrepiando, angustiando, tirando o sono, te dando o presente do desconforto?
Para ouvir lendo: o álbum magnífico do músico curdo Hafez Nazeri. Em especial, essa composição com o mantra Om, o som da criação e da matéria escura. O Selah, aquele espaço antes do Todo.
Textos citados:
AKOMOLAFE, Bayo. What climate collapse asks of us. Disponível em: http://www.emergencenetwork.org/whatclimatecollapseasksofus/
INADEQUADA, Razão. Anarquia relacional - Espanto. Disponível em: https://razaoinadequada.com/2020/12/13/anarquia-relacional-espanto/