Lembro da primeira vez que o jabuti que vive no quintal dos meus pais sumiu. Eu devia ter uns 10 anos e era o primeiro ano do animal conosco. Sua antiga dona tinha um casal. O macho ela deu para mim e a fêmea para a minha prima, que morava na próxima rua. Minha tia não gostou muito da ideia de um réptil fazendo sujeira no seu quintal cimentado e logo eles estavam reunidos novamente no que parecia seu habitat natural: a floresta da minha casa. Mas os seres mudam seu comportamento de acordo com o ambiente em que estão. Enquanto um inverno era só mais uma estação no pátio artificial da minha tia, no meu quintal, se tornou motivo de grande mistério.
Era só chegar o outono e os jabutis desapareciam sem deixar rastros. Tenho memórias de infância das buscas que eu e meus amigos organizávamos para encontrá-los. No primeiro ano, pensei que eles não tinham se acostumado com a nova casa e ido embora para sempre. Mas foi só a jabuticabeira começar a dar suas pequeninas flores cheirosíssimas para os dois aparecerem circulando pelo espaço. Logo logo, o chão estaria pintado pelas frutinhas pretas que nunca dávamos conta de consumir e ficava para os bichos todos. O calor anunciava que havia chegado o seu tempo, nos quais os jabutis passariam os dias curtindo a abundância e desfilando para quem quisesse ver. Até hoje é assim e até hoje não descobri para onde vão. Logo pensei nos ursos, que hibernam durante o inverno, mas pode algum animal hibernar num país tropical? Será que cavam um buraco no chão? Ou se camuflam tão bem por seis meses que eu não consigo encontrá-los? Talvez, essas são algumas perguntas cujas respostas eu prefiro não ter. Vez ou outra, é mais vale abrir mão do conhecimento para manter o encantamento.
Uma amiga gosta de dar nome às árvores que conhece. Ela tem um método para isso: ela pergunta e depois a abraça para ouvir a resposta. Às vezes, o nome vem na hora, às vezes vem depois. Quando ela me contou isso, fiquei com vontade de descobrir o nome da grande jabuticabeira do quintal, a mesma que florescia junto com a volta dos jabutis. Eu perguntei, abracei, mas ela nada me disse. Ou melhor, ela me respondeu com um silêncio. Mas não era um silêncio de falta de comunicação, mas com uma linguagem que eu não podia entender: antiga, profunda, complexa, familiar, mas agora já muito distante na minha memória para que eu a lembrasse. Pedi para a minha amiga tentar e ela sentiu o mesmo. Segredos.
Mary Oliver, uma poeta norte-americana, cuja religião é a natureza (assim como a minha), disse o seguinte quando esbarrou num mistério sobre a vida das aranhas: “Eu sei que eu posso encontrar respostas para todas as perguntas que a curiosa vida da aranha me fez fazer em algum livro de conhecimento, e há muitos. Mas o palácio do conhecimento é diferente do palácio da descoberta, no qual eu, verdadeiramente, sou como Copérnico. O mundo não é o que eu pensei, mas diferente, e mais! Eu vi tudo com os meus próprios olhos! Mas uma aranha? Até isso? Até isso”
Arne Naess também defende o direito dos mistérios da natureza continuarem assim. Segundo ele, isso é parte da sua própria essência gestaltiana, composta por fenômenos interconectados e indivisíveis. Daí vem a famosa frase “O todo é mais do que a soma das partes”. Um gestalt é, então, algo muito complexo e sensível à nossa tentativa de analisar seus fragmentos, exigindo uma certa abstração (e, por que não, entrega?) para apreender o todo que emerge. O sumiço dos jabutis, o nome das árvores… não é só isso, é mais. Ele ainda diz o seguinte, sobre as viagens que a mente, sozinha, não pode fazer: “Nós não devemos pensar que mais informação deixará mais claro. O que é necessário é uma reorientação do pensamento para apreciar o que pode ser aprendido de coisas simples, como reconhecimento das relações que estabelecem com outras coisas. E, para isso, é preciso aprender a sentir como um, junto com eles”. Junto com eles, com os outros seres, com os gestalts e com a natureza como um todo. É preciso que a mente tenha como companheiros de viagem o coração e sua paixão pelo desconhecível. A vida pede uma devoção que às vezes tateia no escuro, cega aos caminhos por onde passa. Paradoxalmente, tentar entendê-la o tempo todo a esvazia de sentido.
Posso dizer, com isso, que a minha curiosidade insaciável por desvendar mistérios só o é pela certeza que tenho de que eles sempre permanecerão mistérios. Há algo na natureza que indica que não há fins, não há lugares para chegar ou palavras que revelarão tudo. Há apenas meios, atravessamentos e conexões que dizem um pouco do que somos, mas nunca tudo. Nunca tudo. Pois a boa vida é vivida na base dos assombros: na capacidade de sempre se surpreender com um cogumelo brotando do solo com tons azulados, e duro ao toque, como madeira; nas veias que cortam as montanhas vistas da minha janela nas primeiríssimas horas de sol da manhã; na floração do ipê rosa que vai acabando e dando lugar à uma explosão de flores amarelas; e nos jabutis, que somem sem avisar, e voltam nos deixando curiosos pela explicação, que nunca chega. Alguns segredos precisam permanecer assim.