Finalmente pareço começar a digerir o processo vivido nas eleições. As fortes emoções individuais (com as quais nenhum corpo humano está preparado para lidar por um período longo sem adoecer) e o rasgo no tecido social brasileiro, que se alargou ainda mais nessa última campanha, só agora começaram seu processo de compostagem em mim (em nós?). Os ânimos se acalmam e os dias voltam a ser banais. E no bom sentido… daquilo que preenche, incorpora e dá ritmo à existência. Que a torna possível de ser suportada.
Fiquei pensando, mas principalmente sentindo, no significado do que estamos vivendo. As análises políticas não dão conta daquilo que habita os entres, as frestas… há algo de tentacular nisso tudo e seus movimentos são tanto imprevisíveis quanto fugitivos. Quando concluímos que chegamos a algum lugar de compreensão, eis que o tentáculo já deixou o local e passou a habitar outro outros.
Mas é preciso dar algum sentido para sobreviver. Ainda que ele seja circular, espiralar, aberto às reformulações constantes. É preciso, como Donna Haraway diz, lidar com as muitas histórias contadas neste tempo para tornar o mundo vivível para todos…
E é na natureza que pareço encontrar algumas respostas. Primeiro, com a ideia de compostar, que me parece melhor que digerir, porque continua o processo depois que o alimento se transforma. O que é feito dele? Volta para a terra, onde se torna adubo e cria condição para outras formas de vida. Mas, não é qualquer resíduo e em qualquer lugar, que vai gerar terra fértil. É preciso situar o que e onde (a mesma ideia pode regenerar aqui e apodrecer lá). Em uma composteira caseira, daquelas feitas em caixas sobrepostas, a quantidade de cítricos precisa ser limitada. Carne nem pensar. Em modelos feitos no chão, esses dois já podem entrar, mas é preciso cuidar da altura da pilha. No entanto, ainda que tenhamos que fazer escolhas, organizar e cuidar, o resto é além-humano: fungos, minhocas, formigas se organizando para, através da morte, possibilitar a vida.
O processo que estamos vivendo não acabou com o resultado das eleições. Não acabaria nem mesmo se tivesse sido menos acirrado. Há algo que nasce e morre nos espaços entre nossas opiniões divergentes. Algo para além de nós, mas iniciado por nós, e que ainda não entendemos. Compostar é abrir espaço para as lições que a vida têm para a própria vida. No caso, para a vida humana que, por não saber lidar com a diversidade conciliável, transforma as diferenças em aspectos irreconciliáveis. O que era para ser polaridade vira polarização.
Nesse sentido, uma pergunta que anda me perturbando: Como a minha postura, as minhas escolhas e os meus posicionamentos reforçam essa situação e criam resultados que eu não desejo? Como orientar minhas ações para a união sem ter que aceitar o inaceitável?
O solo me deu algumas pistas. Aquelas plantas que a monocultura insiste em chamar de praga não gostam de ser combatidas. Elas podem até cair no primeiro jato de veneno, mas encontram um jeito de brotar de novo e exigem soluções cada vez mais agressivas para derrubá-las. O problema é que essas soluções acabam com todo o resto. Vão-se as ervas indesejadas, mas também a água potável, a saúde do solo, a nossa e a dos trabalhadores rurais. A nossa oposição não estaria fazendo a mesma coisa? Como diminuir a influência de algo danoso naquele contexto sem destruir o que sustenta o próprio contexto?
Paradoxalmente, é exatamente na diversidade que a natureza encontra sua rota de fuga. Com muitos tons de cinza entre o preto e o branco, o preto e o branco já não têm mais tanto poder. Só são mais um no meio da multidão. Ao invés de combater ervas daninhas, melhorar a qualidade do solo, torná-lo mais fértil para que outras tantas espécies cheguem e nenhuma domine.
Não sei como fazer isso ainda, mas a palavra que fica em mim é disposição: disposição para dialogar, disposição para escutar, disposição para o encontro (e para o afeto que ele gera), disposição para abandonar constantemente as certeza nas quais insistimos em nos agarrar em tempos tão incertos. Disposição para aceitar o fim, a derrota, a decadência. Desistir de ideias de pureza, de coerência e de completude e encontrar ali, nos registros mais improváveis dos nossos encontros, alguma possibilidade de reconexão. Disposição como ferramenta e amor como adubo.
Eu adoeci. Meu corpo não deu conta de digerir a experiência. Nem sempre é uma escolha. O mundo acontece a nós. Mas passada essa pequena morte, já vejo “vida vindo vasta”, como li por aí esses dias. Agora, preciso (precisamos) de regeneração, não de renascimento, outra ideia de Haraway. E regeneração, como compostar, não é sobre um recomeço, mas sobre infinitos recomeços e mortes, iniciados e finalizados com e a partir de tudo aquilo que nos aconteceu, num fluxo que nunca se esgota. Que encontremos formas de seguir juntos.
Nossa, Talissa! Como me identifiquei com esse relato. Do inicio ao fim... A compostagem segue lenta por aqui, mas com disposição. Que venham os infinitos recomeços! =)