Não sei bem como começar este texto. A escrita, minha salvadora, se torna carcereira. Como falar em continuidade, fluxo, devires, se preciso organizar meu pensamento de forma linear para que vocês me acompanhem? Mas este é o recurso que eu tenho e farei o possível para que as palavras possam ganhar formas espiraladas vez ou outra. E hoje quero falar sobre o amor. Não só o amor romântico das relações afetivas. Mas o amor enquanto força atravessadora dos fenômenos e ação política no mundo. Quem me inspira nesta conversa é bell hooks (contra as convenções linguísticas, ela preferia ter seu nome escrito em letras minúsculas), Emanuele Coccia, mas também os afetos que me tocam e, sempre, o mundo mais que humano.
Na parede do meu escritório tenho algumas borboletas, libélulas e folhas mortas que coletei por aí. Elas estão em um estado tão perfeito que, quando as observo, é quase como se estivessem vivas. Quase. Falta algo. E não é o movimento. Uma borboleta viva poderia entrar pela minha janela sem que eu percebesse e parar, imóvel, ao lado da morta que, ainda assim, eu perceberia a diferença entre as duas. É a vida em si. Uma força que já chamei de Deus e que hoje gosto de chamar de amor. Segundo Coccia, na origem da filosofia, a natureza tinha um significado bem parecido com aquele no qual pretendo chegar. Ela não era uma oposição à cultura, como nos mundo dualistas de hoje, mas aquilo que “permite a tudo nascer e devir, o princípio e a força responsáveis pela gênese e pela transformação de todo e qualquer objeto, coisa, entidade ou ideia que existe ou existirá”.
O amor é o que anima, o que dá forma e movimento. Ou seja, o que permite às entidades do mundo se metamorfosear num fluxo contínuo, sem as fronteiras do tempo linear. Olho de novo para a borboleta morta na minha parede e percebo que sim, ali também há esta força. Agora não mais expressa em vitalidade. Mas ela continua no jogo. Seu pequeno corpo se decompondo abastece a vida com mais vida e mostra que transformação é lei. Se ela estivesse na floresta, alimentaria outros animais. No meu escritório, as bactérias aproveitam o banquete sozinhas. Ali também está o amor, abrindo espaço para o fluxo, sendo o próprio fluxo.
Visto que o amor é tudo isso, me pergunto como levar tal sentido para além das minhas percepções sobre o mundo e transformá-lo em prática? É aí que bell hooks entra na minha vida, me convidando a pensar o amor também enquanto ação e não apenas sentimento: uma ética amorosa para as nossas vidas individuais e coletivas. Segundo ela, o poder disso é “fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento”. Aqui, as definições são importantes pois moldam ações. Assim, como falamos no último texto: se algumas ontologias enxergam o rio como avô, como fazer mal a ele? Se entendemos o amor como força atravessadora de tudo o que é vivo, mas também como ação, ele se manifesta em cuidado, respeito, compromisso e confiança. Um elo que precisa ser estendido para além das nossas humanidade, abarcando também as espécies companheiras (para citar Donna Haraway).
Para bell, ao escolhermos o amor, é preciso abdicar a um monte de outras coisas, como o patriarcado e a violência que ele impõe aos corpos das mulheres e ao corpo da Terra. Nesse tipo de cultura, é comum pensar que homens podem explorar mulheres, crianças e natureza e, ainda assim, serem amorosos. bell diz que essas ações anulam o amor e cita o psicanalista Carl Jung “onde o desejo de poder é primordial, o amor estará ausente”. É preciso escolher: ou se ama alguém, ou tenta dominá-lo; ou se ama a Terra, ou tenta explorá-la. Porém, não é de um dia para o outro que essa chave vira. Na verdade, me parece ser trabalho de uma vida inteira. Amar é prática e, enquanto prática, precisa ser escolhida a todo instante: quando contemplo um animal ou cuido dos corações que seguem comigo.
Quando sento para meditar, ofereço minha respiração ao grande espírito (o amor). Não vejo o que poderia ser mais precioso do que entregar a força que me anima para o Todo. Quando respiro, é amor que troco. É a interdependência fundamental que tenho com tudo o que me cerca. Quando respiro, me lembro de amar e através dela amo, porque entrego meus sentires para o mundo e os recebo já outros, afetados pelas inúmeras forças e seres que se relacionam com ele. O sopro universal é amor e é dele que somos feitos. Respirar é um jogo de se lançar e receber o mundo, como bem cita Coccia. Mas eu complemento, respirar é estabelecer compromissos amorosos com o mundo:
“Se viver é respirar é porque nossa relação com o mundo não é a de estar-lançado ou do estar-dentro-do-mundo, nem mesmo a do domínio de um sujeito sobre um objeto que está diante dele: estar-no-mundo significa fazer a experiência de uma imersão transcendental. A imersão - de que o sopro é a dinâmica originária - se define como uma inerência ou uma imbricação recíproca. Estamos em alguma coisa com a mesma intensidade e a mesma força que ela está em nós. É a reciprocidade da inerência que faz do sopro uma condição sem saída: impossível se liberar do meio no qual se está imerso, impossível purificar esse mesmo meio da nossa presença. Inspirar é fazer o mundo entrar em nós - o mundo está em nós - e expirar é se projetar no mundo que somos”
Se expirar é se projetar no mundo que somos, também minhas escolhas, sentimentos e ações formam o mundo que sou e que habito. A pergunta que segue comigo, então, é: como me projetar no mundo e permitir que o mundo entre em mim de forma amorosa? Ouvindo bell hooks, me parece ser o caso de me comprometer, cuidar, respeitar e me responsabilizar pelos meus afetos. Partir para o encontro e me permitir ser transformada por ele. Criar espaço para os convites e abalos necessários. Aqueles que já me amaram, ou que foram amados por mim, por anos ou por alguns instantes, tendo raízes ou corações… eles me fizeram, com o que levaram e com o que deixaram. Sou feita de atravessamentos. É ser um e, ainda assim, ser junto. Com humanos, plantas, espíritos, animais… a vida como um rizoma orientado pelo amor.