Semana passada convidei as minhocas a habitarem meus sonhos e a me tirarem, ainda que apenas por alguns instantes, da minha existência humano-centrada. Mais tarde, pensava nas implicações políticas e sociais disso (tirar o humano do centro) quando me deparei com uma pergunta poderosa do antropólogo Arturo Escobar, daquelas que ativam a minha imaginação, não para melhorar este mundo, mas para as possibilidades de criação de um outro. No artigo Cultura y diferencia: la ontología política del campo de Cultura y Desarrollo (2012), em que fala sobre as ontologias relacionais, ele questiona: “Que impacto tem a concepção moderna da política quando esta não é restringida aos humanos?” Como seria um mundo no qual o mais que humano é levado em conta nas decisões todas?
Mas vamos voltar alguns passos e explicar o que é uma ontologia e, depois, o que seria uma ontologia relacional. Essas concepções farão diferença no que vamos discutir aqui. O que a filosofia define como ontologia é o estudo da essência do ser, do que é real. No entanto, para assumir tal definição, é preciso assumir também uma realidade única, que não nos ajuda na aceitação do pluriverso (muitos mundos coexistindo). Então, assim como Arturo Escobar faz no seu artigo, vamos preferir o conceito de Blaser (2008) que se trata de afirmar a existência de mundos diversos, sem rejeitar o real. Neste caminho, a ontologia teria três níveis: O primeiro seria a forma como os diversos grupos sociais compreendem as entidades que existem no mundo; o segundo é que tais premissas não são apenas imaginárias, mas se transformam em práticas, são corporizadas; já a terceira é que tais ontologias se tornam histórias que contamos sobre nós mesmos e sobre a vida na Terra.
E por que isso faz diferença em nossa conversa sobre seres mais que humanos e sua participação na política? Porque, quando disse que uma pergunta forte como a que Escobar disse nos ajuda a imaginar outros mundos, omiti que eles já existem. Porém, muitos de nós (vivendo vidas pautadas pela modernidade eurocentrada e capitalista) não vivemos nele. A ontologia moderna, ao criar suas premissas sobre as entidades do mundo, parte de dualismos como corpo/alma, natureza/humano, natureza/cultura e cria fronteiras como a economia, a política, o capital e etc. Nesta relação indivíduo x objeto, todos os considerados objetos estão sujeitos à manipulação do indivíduo que, aqui, é só o ser-humano.
Tal visão se transforma em práticas e em todo uma forma de estar no mundo, como Escobar bem pontua: “a promulgação de uma ontologia dentro da qual uma montanha é um ser inerte, sem vida, leva a sua eventual destruição”. Se a natureza é algo a parte de nós, um pano de fundo para a vida humana se desenrolar, ou pior, um mero recurso para o avanço civilizacional, sua exploração é aceita como parte natural do processo. Assim, todas essas premissas e práticas com as quais sustentamos o modo de vida moderno, se transformam também numa mitologia muito própria dos nossos tempos, nas histórias que contamos sobre nós mesmos, em uma retroalimentação desta visão de mundo. Elas estão nos jornais, nas redes e nas nossas conversas. São os contos de um animal que decidiu, só por ter uma capacidade raciocinar diferente de outros animais, se apartar de tudo o que o criou e o constitui.
Do outro lado (das divisões ontológicas), há mundos em que as pessoas ainda conversam com as montanhas, batizam suas crianças no avô rio e olham para as estrelas para conversarem com os seus ancestrais. A esta forma de estar no mundo, Arturo Escobar deu o nome de ontologias relacionais e elas estão na cosmologia dos povos indígenas e de muitas tradições orientais. Importante dizer aqui que a ideia de colocar todas no mesmo pacote de um conceito não é dizer que são tudo a mesma coisa. Mas, que elas partem de alguns pontos em comum na sua compreensão sobre a realidade. O primeiro é a não existência de indivíduos por si só, mas da interdependência fundamental entre todos os seres, da existência que se dá a partir da relação, o ser-com. Podemos encontrar tal consciência no budismo, por exemplo, quando o mestre Thich Nhat Hahn diz que uma nuvem não existe, mas inter-existe. Ou na cosmopercepção dos povos andinos (quechua ou aimará) que têm o ayllu, uma comunidade estendida para muito além do humano.
Quase que num contraponto com a visão anterior, (não no sentido de criar outro dualismo, mas de trazer clareza sobre as diferenças ontológicas) aqui tais premissas sustentam uma ética de cuidado com os seres mais que humanos. O rio-avô não pode ser poluído. O alimento não é cultivado em sistema monocultural porque isso não tem lógica nos ciclos naturais. A vida de uma montanha importa mais que a escavação de minérios. E, claro, isso se reflete nas histórias que esses povos criam sobre si e sobre o mundo, como os mitos e rituais de criação, impondo toda uma organização social que se dá a partir dessas relações estabelecidas com árvores, pássaros, antas e espíritos. Segundo Escobar, o que está em jogo são “formas relacionais de ser, fazer e conhecer”.
Que impacto têm, então, uma política não restringida aos humanos? Fiz todas essas pontuações para esclarecer que, antes de enfrentarmos as dimensões práticas das nossas organizações sociais, é preciso rever os pilares que as sustentam. Lembro como fiquei tocada quando o escritor nigeriano Chinua Achebe conta em seu livro “O Mundo se Despedaça” que as reuniões na sua comunidade envolviam não só os vivos, mas também os espíritos dos seus ancestrais. A opinião e a sabedoria deles era fundamental para que uma decisão fosse tomada. Em um livro de nome tragicamente parecido “A Queda do Céu” o xamã yanomami Davi Kopenawa que, assim como Achebe, está vendo seu mundo se desintegrar por um modo de vida pautado pela destruição, mostra o quanto os xapiris (espíritos de ancestrais, mas também de animais) estão presentes na sua função enquanto xamã e em toda a vida comunitária.
Em seu artigo, Escobar cita os diversos movimentos sociais da América Latina baseados nas ontologias relacionais e em como eles estão cada vez mais determinados em resistirem, apesar do rolo compressor da modernidade. A isso, ele chama de ativação política da relacionalidade e cita os casos do Equador e da Bolívia que, em suas constituições, são agora estados plurinacionais, incluindo as diversas ontologias em sua dimensão política. Não que seja esta a solução última. Há diversas críticas para como tal questão vem sendo conduzida nestes países. No entanto, é normal que assim seja em tempos de (podemos falar em) transição? Talvez, talvez estejamos caminhando para habitar um pluriverso, onde os diversos mundos não se excluem, mas conversam e se alimentam. Não só mundo humanos, mas também os dos outros seres.
Aí me vem a pergunta, como seria se perguntássemos à uma montanha se ela deseja ou não uma intervenção? Ou a um pássaro se as luzes da cidade à noite atrapalham o seu voo? Ou, quem sabe, como as tartarugas marinhas se sentem com tanto plástico no oceano? Obviamente, precisamos engajar outros sentidos, linguagem ou, como Goethe diz na fenomenologia, outros “órgãos de percepção” (quem sabe o que nos espera?). Montanhas, pássaros e tartarugas não falam, mas será que não se comunicam? Será que, se o ser humano der um passo desarmado de preconceitos em direção a essas espécies companheiras, não seria possível um diálogo? E assim, quem sabe negociar nossa permanência neste mundo? São muitas perguntas e exercícios de imaginação que, na maioria das vezes, não me levam à nenhuma resposta. No entanto, algo me diz que o deslocamento por si só, a imaginação e a abertura de espaço que tais reflexões criam no meu corpo já me tiram do centro e me colocam no jogo comunitário e relacional que o mundo propõe.
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Para se aprofundar:
ESCOBAR, Arturo. Cultura y diferencia: la ontología política del campo de Cultura y Desarrollo. WALE’KERU: Revista de Investigación en Cultura y Desarrollo, 2012.