Às vezes acho que têm duas pessoas morando dentro de mim e elas são completamente diferentes. Uma é introspectiva, calada, eremita, profundamente conectada ao espiritual e vive em zonas profundas em busca dos mistérios da vida. A outra é extrovertida, tem incontáveis amigos espalhados pelo mundo, sai sozinha e volta pra casa com 10 novas amizades, gosta de pop e quer ficar rica.
Nos últimos anos, desde o começo da pandemia para ser mais específica, a primeira tomou conta dos meus dias. Junto com Krenak, Kopenawa, Haraway, Coccia, Goethe e outros tantos mestres do invisível, eu abri os olhos de dentro para olhar para aquilo que não estava tão dado, mas que queria nascer. Me dediquei a interiorizar e a me lapidar para ser alguém mais íntegra e generosa com o mundo e nas minhas relações. Vivi com muito pouco porque todos os meus tesouros estavam dentro. Mergulhei profundo nas minhas dores e vivi meses sem me deixar ser tocada, amada… (com tudo à flor da pele, qualquer proximidade parecia ser agressiva).
Até que a vida fez um convite e a eu mundana (no sentido de terrena, enraizada, conectada com a realidade deste mundo que, ainda que não seja toda ela, é uma parte) voltou a marcar presença. Passei as últimas semanas entre viagens, descobrindo amigos que nem sabia que tinha, vivendo amores efêmeros, dançando até de madrugada, indo a um festival sozinha (e não ficando sozinha lá), bebendo mais do que eu me permitia, relaxando um pouco na minha alimentação e trabalhando para ganhar mais dinheiro. A mudança não veio suave. Diz minha amiga astróloga que tem a ver com urano, mercúrio e sei lá mais o que. Para mim, parece que uma galáxia inteira se mobilizou para me ver dançar a dança da vida. Durante o mês que passei sem dormir (contei nos textos anteriores), minha alma me convidou a trocar de lugar.
No começo, me senti culpada e incoerente. Já não conseguia mais escrever com a delicadeza, força e profundidade que me encontram quando quero falar sobre o mundo não-humano, parei de meditar diariamente e, ao invés de brisa suave, sinto um furacão no meu corpo na maior parte do tempo. Incoerência. Como assim ser outra, se sou tão boa sendo eu?
Mas quem disse que eu também não sou esta aqui? Umas das ferramentas mais cruéis e eficientes do patriarcado colonial foi a divisão ontológica daquilo que era uno: mente/corpo, corpo/espírito, feminino/masculino e etc. No seu estudo sobre as deusas gregas, a psiquiatra Jean Shinoda diz que antes dessa ruptura de alguns mundos relacionais, ou seja, depois do fim das sociedades matrilineares, a Grande Deusa foi dividida em muitas, expressando diversos arquétipos: a mãe, a amante, a intelectual, a caçadora. O motivo? Controlar as corpas de mulheres e dizer a elas qual elas devem assumir. Obviamente, algumas prevalecem em detrimento de outras e, assim, perdemos a sabedoria inata de nossas almas de fluir com a ciclicidade da vida. Uma árvore não está florida sempre e nós também não.
Estar em alinhamento e coerência com a vida, para mim, é aceitar os convites que ela me faz. Eu escolhi viver tudo na sua crueza (e essa não precisa ser sua escolha, não há julgamentos aqui). Se fico um mês sem dormir, mesmo no desespero, quero sentir o que o tremor da minha alma está tentando me dizer; se o meu corpo só quer se divertir até amanhecer, me assumo vento, e vou fazer tempestades por aí; se quero amar sem pensar no amanhã, viro fogueira e me deixo queimar; se preciso ser fiel às profundezas, desaguo em oceano e vou viver nas zonas abissais. Viver é se movimentar e a única ilusão é a da permanência. Tiro, então, os meus sapatos e vou dançar minhas incoerências.
A louca vida cíclica
Que dança maravilhosa <3 bom é permitir movimentar no chamado da vida!